sexta-feira, 26 de março de 2010

A Biocomplexografia de Donatto Leão - Parte 9

Olá pessoas! Cá estou com mais uma continuação.
Boa semana amarelada a todos.

Capítulo 9 – Sobre Vivência


.   Levantei da mesa, confesso um pouco tonto. A história do meu problemático primo parecia o filme Cidade de Deus. Imagino até os “manos” do meu tio falando coisas do tipo “Có é, muleque? A treta é chique?” e coisas do tipo.
.   Me arrumei bem rápido, porque não estava preparado para ver o Paco depois da história que minha avó contou. Entrei no carro e fui para minha casa, pegar uma quantidade de roupa para uns 20 dias, meu notebook, minhas bugigangas necessárias e ficar uns 20 ou 30 minutos sozinho, olhando para o quadro da sala, tentando me concentrar para a história parar de martelar na minha cabeça. Acho que o medo de falar com o Paco seria mais de dó do que de outra coisa. Parecia que eu havia invadido uma privacidade oculta, sei lá. Do jeito que sou uma besta, provavelmente escaparia um ou outro comentário a respeito da história em algum momento em que estivéssemos conversando.
.   Mas quer saber? Eu voltei pra casa da minha avó, antes mesmo de ficar vinte minutos a frente do espelho. Eu não seria tão idiota de ficar comentando e meu primo já era grande o suficiente para entender do assunto, caso viesse à tona.

***


.   Era domingo, dia 26 de Setembro, já estava há uma semana e meia na casa da minha avó.
.   Paco, eu e as nossas novas companheiras de balada tínhamos ido na noite anterior numa festa em Barueri, próximo de São Paulo, dentro do residencial Alphaville. Nunca vi tantos reais por metro quadrado espalhados em tijolos, telhas, jardins e cachorros.
.   Como de costume, em uma semana seguida, inclusive após um funeral, bebemos demais. Até a Paula, que havia acabado de perder o pai, já estava melhorzinha.
.   Era mais ou menos umas 8 horas da manhã, quando meu avô abre a porta do “meu” quarto de visitas dizendo:
.   - Vamos logo, senão fica tarde para voltar! Vamos logo, o sol já raiou e estou pronto!
.   Tomei um susto breve, não entendendo nada da situação. Para falar a verdade, não lembrava nem quem era eu, ou o que era eu naquele momento. .   Estava “cozido”, estragado.
.   - Vamos Donatto, sua avó já preparou o café!
.   - Vô, disse todo sonolento, domingo é dia de almoçar no café da manhã, não é?
.   - Sim, eu sei, mas você combinou e vai ter que cumprir. Afinal faz tempo que eu não vou lá, porque sua avó não me deixa dirigir por uma distância maior que o supermercado e que a farmácia, ambos dentro de nosso bairro!
.   - Ta bom, vô, mas não estou entenden... – foi quando eu me lembrei: havia combinado com meu avô Jorge que iríamos pescar numa região próxima à represa Billings, ali nas proximidades de Ribeirão Pires, ou seja, longe pra caramba!
.   Combinei este passeio porque havia visto na previsão do tempo que iria chover o dia todo no domingo, e meu avô não gosta de tomar chuva. Como sempre, devo admitir que estas previsões do tempo são todas furadas! Só me ferram!
.   O melhor é que o Paco também tinha ido na corda, e falou que iria pescar também.
.   Não tínhamos nada contra pescaria, mas tínhamos tudo contra o meu avô pescando! As poucas vezes em que nos arriscamos acompanhá-lo em uma pescaria, não deu certo.
.   Para o Paco era a primeira vez pescando com meu avô, afinal ele nunca foi a uma pescaria em outros tempos, era rebelde de mais para aceitar um convite como esse. Eu já tinha ido umas 4 ou 5 vezes, me arrependendo umas 4 ou 5 vezes depois. Mas dessa vez seria inédito: iria pescar com sono e ressaca.
.   Era de se esperar que o Paco estivesse com um mau-humor violento, daqueles de nos deixar desgostosos da vida. E ele não estava. É claro, ele não sabia o que estaria por vir. Eu sabia, e estava totalmente apático, quase hepático.

***


.   A pequena viagem por dentro de São Paulo até que não foi tão longa, até porque nos finais de semana, sem trânsito, a cidade encolhe, fica tudo tão mais perto!
.   Quanto mais perto do pesqueiro chegávamos, mais nervoso eu ficava. Paco estava dirigindo, meu avô no banco da frente da sua Grand Cherokee e eu no banco de trás, morrendo de sono mas não conseguindo dormir de tensão.
.   Chegamos ao local, preparamos as varas, pegamos no porta-malas aquela caixa de ferramenta adaptada para pesca, com iscas, anzóis, chumbinhos e bóias reservas. Meu avô sentou no quiosque onde ele costumeiramente ficava, numa pequena ilha artificial que ficava ao centro da maior das três lagoas do pesqueiro. Abriu uma latinha de cerveja, colocou isca no anzol e arremessou a linha na água.
.   Logo depois eu pensei: “Agora começa a festa!”, dei uma risada silenciosa e pensei que por pior que fosse essa pescaria, deveria levar tudo na risada.
Paco se ajeitou justamente próximo ao eu avô e me chamou para ir junto. Com toda a minha experiência em pescaria a La Jorge, sentei-me o mais longe o possível, mas não tão longe assim para não fazer desfeita.
.   Uns 10 minutos depois, meu avô tirou o anzol da água e nada. Os peixes petiscaram sem abocanhar.
.   - Começou a palhaçada! – gritou meu avô, colocando outra isca na água.
.   Não passaram 10 minutos e ele já tirou o anzol da água e de novo os peixes petiscaram a isca sem abocanhar o anzol.
.   - Puta merda! – meu avô levantou, deu um grito de raiva e foi para o outro lado da ilhota.
.   - Vô, não faz meia hora que estamos aqui! – disse Paco vendo a cena desconfortante de nosso avô gritando e espantando tudo quanto é ser vivo de perto da ilhota – pescaria é assim mesmo...
.   - E o que você sabe de pesca? Caçarola... Se não tem peixe aqui, eu tenho que mudar de lado.
.   Paco começou a perceber a enrascada que era ficar ali perto: ele não pescaria nada por causa da barulheira e ainda iria levar xingo a cada “não pescada” do vô Jorge.
.   Meia hora depois, peguei meu primeiro peixe. Depois vieram mais quatro.
.   Paco pescou um apenas, devido às condições do ambiente onde ele estava: muito barulhento, agitado e nervoso.
.   Por estes (e somente estes) motivos, meu avô pescou sim, um único e mirrado peixinho. Ele ficou doido, mas ficou calmo depois pelo simples fato de ter pescado. Na hora de irmos embora, ele como costumeiramente faz comprou um peixe, enorme, e levou para casa.
.   Chegando lá foi todo feliz e orgulhoso levar o peixe para minha avó ver:
.   - Olha querida, o peixão que pesquei hoje! Esse é dos bons!
.   - Nossa Jorge, este dá gosto de preparar. A gente come no jantar, se der tempo de temperarmos.
.   Olhei para a cara da minha avó, esperei meu avô sair de perto e comentei com um pouco de desdém:
.   - Ele comprou este peixe, não parava impaciente em nenhum lugar, fazia barulho e acabou não pescando quase nada.
.   - Eu sei que ele comprou – disse minha avó com uma voz meiga – mas ele não precisa saber que eu sei, na verdade, que ele sempre comprou o peixe quando não pescou nenhum. Mas para que magoá-lo? Quando a gente ama é assim. Se ele faz isso pra me impressionar, quer dizer que ele quer meu bem, mesmo 50 anos depois.
.   Não preciso dizer que depois dessa enfiei meu rabo entre as pernas, fui para o quarto refletir e talvez, quem sabe, marcar pescaria de novo daqui a alguns dias.
.   Eu até toparia pescar de novo, mas o Paco ficou traumatizado, acho que ele prefere jogar golfe.

sábado, 6 de março de 2010

A Biocomplexografia de Donatto Leão - Parte 8

Olá!
Enfim consegui 2 postagens consecutivas...foi um árduo trabalho, mas cá estou!

Abraços amarelos a todos!!!

Capítulo 8 – Paco

. Naquela manhã minha avó contou muita coisa que eu não sabia, ou sabia menos da metade do assunto, ou melhor ainda, sabia por metáforas.
Paco era sobrinho único da minha mãe, que só tinha um irmão mais velho, o tio Ênio. Este meu tio era completamente louco. Não natural, ou seja, ele não nasceu louco, ele ficava louco porque queria. Vou explicar.
. Nós, seres humanos, podemos ser normais se quisermos e se nascermos com a mente saudável. Basta não usar drogas. Agora ficou mais claro?
. A vida do meu tio Ênio, desde pequeno, foi pagode no gueto, cachaça, cigarro, maconha e mulherada. Até que ele conheceu o pior de seus companheiros de loucura: o crack.
. No começo, dizia a minha avó, ele era um mero usuário, trabalhava e gastava tudo, claro, com mulheres, bebida e drogas.
. Passado alguns anos, veio o desemprego. Começou a faltar, perder a hora e o chefe, Sr. Ricardo Medeiros, um homem de muito bom coração, resolveu até ajudar: não queria mandá-lo embora, e ofereceu internação em uma clínica de tratamento, mas meu tio, totalmente louco, chegou ao ponto de brigar com o Sr. Ricardo, dizendo que ele insinuou que o tio Ênio era louco e precisava de tratamento. O Sr. Ricardo estava certo, ficou possesso e mandou meu tio catar lata na rua. Ele foi mesmo, na verdade ele foi arrumar um emprego na sua área.
. Como ele era um cliente assíduo de um dono de boca, um tal de Goré, este ofereceu um cargo de confiança ao tio Ênio e cedeu uma parte da região onde ele tomava conta, para que meu tio fosse como um vice-presidente do tráfico na região. O tio Ênio começou a ganhar respeito dos traficantes e usuários, e com isso veio o dinheiro e muita, mas muita ganância.
. Nessa época ele conheceu a Marjorie. Ah, Marjorie é o nome (será?) da minha suposta tia, mãe de Paco.
. Marjorie, pelas poucas fotos que minha avó me mostrou, era uma mulher estonteantemente linda (fato o qual meu primo sempre foi, digamos, bem apessoado) e claro muito interessada na grana e na fama de meu tio. Foi o que aconteceu.
. O tio Ênio se apaixonou por ela, e ela totalmente esperta aplicou o tão especial, espetacular e fulminante golpe da barriga. Engravidou.
. Quando o filho nasceu, eles foram morar juntos, e claro, a tal da Marjorie não estava nem aí para a criança. Meu tio tinha dinheiro, eles tinham uma babá e uma enfermeira, tudo do gueto.
. Passado 1 ou 2 anos, meu tio já estava famoso na cidade inteira de São Paulo, porque ele podia ser um viciado, traficante e louco, mas era muito inteligente, e utilizava muito bem esta inteligência para arrumar contatos na Colômbia e em outros países exportadores de crack, cocaína entre outras drogras. Goré começou a perder seu poder.
. Certo dia, Buiú, homem de “confiança” do meu tio Ênio, foi chamado pelo Goré. Por mais que meu tio estivesse com poder praticamente igual ao do Goré, ele ainda era subalterno, então Buiú acatou a ordem e foi conversar com o chefão.
. Chegando lá, Goré fez uma proposta para ele:
. - Buiú, se você estourar os miolos do Ênio, as “boca” dele vão ser suas! Topa?
. - Mas ele é meu chefia, como vou fazer isso? E se os “gambé” me pegar?
. - Nenhum “puliça” vai te pegar, Buiú! E seu chefia é um canalha! Você vai ser o chefia, mas estoura os miolo dele, cumpadi!
. Buiú titubeou um pouco, mas resolveu então falar com meu tio a respeito, e ver se conseguia uma “contraproposta” maior.
. Chegando lá, Buiú contou a história para meu tio que, maluco, atirou em Buiú achando que ele era comparsa do Goré, o que na verdade era o contrário, o coitado do Buiú foi apenas avisar. O erro do meu tio foi achar que tinha matado o Buiú, mas não o matou.
. Alguns meses se passaram e o Buiú, que estava foragido, voltou, armado até os dentes e metralhou meu tio, de tamanha crueldade que a perícia demorou algum tempo para descobrir de quem era o cadáver.
. Marjorie, desesperada e com um filho de 3 anos que ela não ligava para cuidar, resolveu aceitar a proposta de Buiú: ficava com ele, e largava o filho com a avó.
. Foi isso que ela fez.
. Numa manhã de terça-feira, meu avô saiu na garagem para pegar o jornal, quando viu o pequeno Paco chorando, sentado no canto da garagem, com uma malinha de roupas, alguns brinquedos e muita desilusão.
. Os olhos de meu avô, segundo minha avó contou, se encheram de lágrimas. Foi a primeira e única vez até então que ela tinha visto meu avô chorar. Eles não viam o menino há uns 2 anos.
. Desde então Paco foi morar com eles. Para sorte dele e inveja minha e de meus irmãos, ele sempre teve tudo do bom e do melhor lá, e isso era em nossa cabeça o motivo dele ser tão rebelde. Nada rebelde agora, a meu ver, para um menino que viu o pai sendo metralhado e a mãe se prostituindo para o próprio cara que tinha matado seu pai. Na frente dele!
. Meu tio podia ter sua insanidade particular, mas ele amava o filho, o defendia até da própria mãe! Paco, ainda criança, passou meses esperando pelo retorno do pai.
. Minha avó ainda contou que a Marjorie, desgraçada, ligava vez ou outra pedindo dinheiro, ameaçando levar o próprio filho caso eles não depositassem. Uma vez minha mãe, quando descobriu esta sacanagem, tentou intervir e no outro dia a bonita estava na porta da casa da minha avó, com uma arma no punho.
. Resolveram pagar a “fiança”.
. Quando Paco tinha cerca de 8 anos, a mãe dele parou de perturbar, do nada.

. ***

. Paco cresceu rebelde, e mesmo que não lembrasse ou soubesse por quê, o choque que tinha recebido quando criança mexeu com seu psicológico.
. Certa vez ele ganhou um cachorro de meu avô, que no outro dia estava morto, envenenado. Paco então começou a fazer tratamento psicológico, e melhorou um pouco, mas continuava com algo dentro dele, que ele não sabia o que era, mas o incomodava.
. Ele foi expulso de pelo menos umas 15 escolas, e não é absurdo ou exagero. Quando não era por briga, era alguma bomba de gás que ele colocava no banheiro feminino, super bonder na cadeira do professor, insinuações sensuais com as meninas (tipo, fazer striptease no pátio da escola no meio da noite para três meninas indecentes) dentre outras “artes”. Por isso não fez amigos, pois ficava pouco tempo nas escolas, fora que era excluído da “galerinha legal”.
. Se formou em um colégio pulgueiro, no subúrbio, o único que aceitou sua ficha “criminal escolar”. O colégio era ruim, a sorte de Paco é que ele puxou a inteligência do pai e conseguiu passar em um concurso público. Juntou um dinheiro, porque meu avô prometeu pagar metade de uma viagem ao exterior para ele se, como vocês já desconfiam, Paco pagasse a outra metade, fruto de seu “juízo”.
. Juízo ele não tinha, pelo menos é o que a gente imaginava. Mas ele conseguiu dinheiro, viajou para a Europa, com 20 anos. Trabalhou lá até que a recessão chegou e ele foi dispensado.
. Aos 27, como vocês sabem, ele voltou ao Brasil, com vários propósitos: o principal deles, me desvirtuar, ou me ensinar a viver.

. ***

. Minha avó tinha me contado toda essa história, e confesso que depois disso, comecei a ver meu primo com outros olhos, além daquele cara boa pinta, folgado e relaxadão.
. Não consegui tirar de minha avó o real motivo dele ter deixado a Europa e também achei um pouco antiético perguntar a ele, mas uma coisa é fato: ele não tinha sido dispensado, estava com uma boa quantidade de euros no bolso, mas mesmo assim voltou. Na minha opinião, ele sentia saudades daqui, contanto não dizendo isso claramente e, também acho que ele queria de certa forma consertar (de um jeito particular) as sacanagens que ele fez com algumas pessoas, como comigo, por exemplo.

Capítulo Bônus 1 – Doação de sangue

. Alguém deve ter perguntado, porque eu perguntaria: e a Marjorie?
. Depois que passou a viver com o Buiú ocorreu o seguinte: Goré, com medo de outra traição matou Marjorie, e Buiú ficou louco e matou Goré. Depois de uns meses, Silas matou Buiú.
. Quem é Silas?
. Não sei.
. Não me façam perguntas difíceis.